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domingo, 10 de julho de 2016

O MUNDO DAS COISAS REDONDAS





   Imagino quantos atletas estão em gestação quando ouço a algazarra dos meninos chutando a bola

   Agora estou morando perto de uma escola, um colégio público que tem uma pequena quadra coberta onde os moleques batem bola dia e noite. Lá eles xingam e vibram – eu vibro com eles. Acho bonito acordar com aquele coro de xingamentos cabeludos, parece um coro de anjos. Se o Brasil tivesse mais quadras cobertas seria outra a nossa Olimpíada. Os moleques não precisam de estádios, nem de velódromos milionários, precisam só de uma cancha de futebol e de uma chance. É assim que dão pontapés o dia inteiro numa bola surrada, colocando sua energia explosiva no lugar certo. É muito difícil as “autoridades” que podem escolher entre quadras ou estádios entenderem isso? Criam elefantes brancos de concreto armado e eliminam os caminhos através dos quais os moleques poderiam montar o bicho.
   As quadras cobertas e os campinhos de várzea são uma escola para muita gente. Só quem convive com bolas pode treinar o chute. Pelé não seria um dos melhores atletas do mundo se não tivesse sido incentivado pelo pai – que era jogador de futebol – a participar vivamente das partidas onde ele conheceu o goleiro Bilé, que depois inspiraria o próprio apelido do menino Edson Arantes do Nascimento. 
   Pelé não seria o atleta que é se não fossem os times infanto-juvenis como o Canto do Rio, Ameriquinha e outros. Pelo pai foi incentivado a criar o Sete de Setembro, time de garotos que conseguiam bolas e camisas vendendo bugigangas nas ruas e praças. Na época, Pelé era engraxate. Em 1956, aos 11 anos, descoberto pelo jogador Waldemar de Brito foi convidado a jogar no Bauru Atlético Clube. Foi o mesmo Waldemar que o levou à Vila Belmiro e profetizou: “este menino vai ser o melhor jogador do mundo.” Não deu outra. Na sequência Pelé começou a jogar no Santos. Dali para 1958 e a consagração na Suécia foi um pulo. 
   Fico imaginando quantos atletas podem estar em gestação quando ouço a algazarra dos meninos chutando a bola. Fico imaginando qual deles pode ser um Pelé, um Zico, um Rivelino ou Neymar. Seu vozerio me remete aos ecos da infância quando, por morar perto de um clube, ouvia o som das partidas. Da mesma forma, quando meu pai e meus tios ouviam rádio eu escutava à distância as grandes torcidas em tardes febris de domingo e futebol. O som parecia colar os ouvidos dos mais velhos aos rádios pilha através dos quais chegavam todas as emoções dos campeonatos que depois passaram a ser vistos na televisão.
   Apesar de toda tecnologia, o pé de um menino não pode crescer sem bola. Ainda que agora a garotada tem tablete e Iphone, conheço muitos que têm a mesma paixão pelo jogo, pela habilidade e a malícia de poderem conectar seu corpo à possibilidade de ser um atleta no futuro. Lamento que todo investimento numa Olimpíada não possa ser distribuído de outra forma, como projeto de educação que ultrapasse as fronteiras de um evento. 
   Que bom se toda iniciativa para fazer “bonito ao mundo” fosse aproveitada para fazer bonito para nós mesmos, ajudando meninos e meninas a ampliarem suas chances. 
   De minha parte, sinto enorme ternura quando ouço o burburinho que vem de uma quadra de escola ou de um campinho de várzea, onde as vozes parecem regidas por um maestro invisível que conhece as escalas da emoção de uma simples pelada. Uma relação que faz parte das melhores coisas da infância quando percebemos que tudo que é redondo gira de forma mágica, como se o movimento da Terra se condensasse aos pés dos meninos quando descobrem a bola. (Crônica da jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celiamusilli@gmail.com página 4, caderno FOLHA 2, espaço coluna CÉLIA MUSILLI, domingo, 10 de julho de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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