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quarta-feira, 13 de julho de 2016

O CORPO NOS CONECTA



   Em um mundo dominado por preconceitos e violências de todos os tipos é urgente voltar ao corpo

   ÀS VEZES a peça não é tão boa, mas quase sempre eu choro ao ver tanta gente levantando e aplaudindo junto. Os atores se alinham, abre o peito e nós jogamos os sons das mãos. É uma comunicação genuína. A maioria não se conhece, mas naquele momento somos inseparáveis.
   Comer juntos é outra ação poderosa para criar relações além das identidades e bolhas usuais. Os corpos se assemelham, então naturalmente vemos o outro como igual – algo raríssimo em outros contextos.
   Num mundo cada vez mais privado e especializado, com trabalhos cada vez mais imateriais, entre seres que tentam se diferenciar, é muito importante, de vez em quando, deixar que nossos corpos se sincronizem. Cantar, tocar, dançar, rezar, nadar, caminhar, silenciar junto. Em geral, nos agrupamos pelo falatório: a gente nem saberia direito o que fazer em um encontro não verbal. Por isso admiro iniciativas como a Fritura Livre, que todo mês reúne mais de 100 pessoas para uma roda de música corporal (improvisada, comunitária, inclusiva) em uma praça da cidade de São Paulo.
   Para nos conectarmos a outros corpos, precisamos acordar a nossa corporalidade. Por que você não se dá o presente de chegar em casa, se estirar no chão e apenas ficar ali, sentindo o corpo respirar e relaxar por si só? No espaço do corpo, não há histórias, e-mails ou pensamentos compulsivos. Na respiração, não há tarefas ou metas. No contato com o chão, não há fracasso ou sucesso. 
   O que é brigar senão perder o contato com o chão? Observe um casal aflito e veja como ambos parecem pairar sobre suas cabeças, suspensos em abstrações e discursividades. Da próxima vez que se perturbar, observe como você perde a conexão com o próprio corpo e sinta os seus pés – os pés nos resgatam. Tanto é que uma das instruções iniciais na prática de shamatha (meditação do calmo repousar)é trazer a atenção de volta ao corpo. A violência vem da anestesia: porque somos incapazes de sentir dor, causamos dor. É urgente despertar os sentidos. 
   Pra lembrar de nossa humanidade em comum, de vez em quanto, experimente deixar que seu corpo se reconheça em outros: uma pessoa esperando o ônibus, uma pessoa se coçando, uma pessoa franzindo os olhos ao sentir a luz do sol bater no rosto (como na peça Arrã, de Vinicius Calderoni), uma pessoa vendo um vídeo do grupo Porta dos Fundos, uma pessoa alternando micro-expressões diante da tela do celular, uma pessoa com sono, uma pessoa mastigando, uma pessoa meio molhada na farmácia da esquina esperando a chuva passar, uma pessoa abrindo ou fechando a porta, uma pessoa na fila, uma pessoa travando a mandíbula, uma pessoa testando os sons da boca, uma pessoa se levantando da cadeira... corpos vivos em todas as direções!
   Não tem inimigo que não durma, que não coloque comida na boca, que não seja frágil e bondoso em algum momento. Não tem guerra que se sustente quando um dos seres é flagrado nesses momentos. E não há momento que não seja assim. Basta abrir o corpo. ( GUSTVO GITTI, professor de TakeTiNa (florescimento humano pelo ritmo. Seu site é gustavogitti.com página 51, Quarta Pessoa, REVISTA SIMPLES, JUNHO DE 2016. Retrato: Paula Fabrizio. Impressa na Gráfica Abril – São Paulo,SP).

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