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quarta-feira, 20 de julho de 2016

ADOLESCÊNCIA E O RITO ORDÁLICO


   Durante longo período da História Antiga e que se estendeu até a Idade Média, era comum o emprego da ordália, ou seja, um rito especial empregado para julgar criminosos. Através dele a vida do julgado era entregue ao crivo de uma força natural, um deus, que poderia puni-lo com a morte ou absolvê-lo, conforme fosse o caso. Na verdade, era considerado um ato voluntário do próprio julgado, pois lhe era dado a chance de confessar todos os seus crimes para livrar-se de uma sentença fatídica. Por essa característica, a ordália era considerada uma opção pelo risco, uma forma de suicídio. 
   Estudiosos associam essa prática às manifestações do inconsciente coletivo, isto é, pertencente à memória universal e que por isso se repete através das gerações. Quem a pratica não tem consciência de que opta por uma forma de sofrimento pessoal e cumpre-a em si mesmo para atingir a plenitude do funcionamento. Em algumas culturas tribais foi institucionalizada através dos ritos de passagens nos quais o candidato a guerreiro era submetido a provas terríveis , como atirar-se de penhascos preso por cipós aos pés, passar noites sozinho na escuridão da floresta, ser ferroado por insetos peçonhentos e arder de febre durante dias – por exemplo. Se sobrevivessem, era porque teriam recebido a aprovação dos deuses, assim como no julgamento ordálico.
   Pela ótica de David Le Breton, Professor de Sociologia e Antropologia da Universidade de Strasbourg, a delinquência juvenil é a edição moderna desse rito. Alias, as retaliações pela sociedade, o estigma de “marginal”, a punição legal e outras formas intimidativas aguçam essa necessidade, funcionando como um rito de passagem moderno, que agora se institucionaliza exatamente na medida em que impõe castigos e provas a serem cumpridos para que se possa ascender socialmente. Nessa versão moderna, porém, permite-se ao candidato escolher a forma pela qual deseja buscar o sofrimento, a dor e o medo (uso de drogas, brigas, esportes radicais, práticas de delitos, etc), ingredientes necessários para provar suas capacidades e testar seus limites, liberdade e autonomia. 
    Há mais de vinte anos acompanhando e dedicando minha atenção profissional a dependentes químicos, muitos dos quais iniciados na faixa etária entre 12 e 18, tenho constatado na prática a veracidade desse fenômeno através das inconsistentes justificativas apresentadas para o inicio dessa conduta arriscada. São afirmações mais ou menos assim: “ Ué, é normal. A gente usa...se quebrar a cara, quebrou. Dá nada não!”.
   Como destaca Breton, através dessa “ordália moderna” os jovens”... interrogam simbolicamente a morte para saber se vale a pena viver ,” Em suma, brincar com o perigo revela a necessidade de intensificar a própria existência. É gritar para o mundo e expressar o mal-estar pelas rupturas que evidenciam a disfuncionalidade das relações socioafetivas, especialmente as familiares. Nada faz muito sentido nesse encapsulamento em que a vida parece ficar suspensa pela dicotomia que espreme o púbere entre o mundo fantástico e protegido da criança e o amedrontador mundo desconhecido do adulto. Jogar com o perigo faz precipitar as endorfinas no cérebro, estimulando ou relaxando , modificando as percepções, enfim, devolvendo ao jogador uma ilusória completude de si. 
   Afinal, ser adolescente nunca foi fácil. Aristóteles, no século IV a.C. já os descrevia como apaixonados, irascíveis e incapazes de controlar seus impulsos. 
   Apenas a tecnologia mudou no entorno deles. ( JAIR QUEIROZ, psicólogo clínico e pós-graduado em Segurança Pública em Londrina, página 2, ESPAÇO ABERTO, quarta-feira, 20 de julho de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

2 comentários:

  1. Mais uma vez me sinto lisonjeado por encontrar um trabalho de minha lavra replicado neste espaço. Muito obrigado e muito sucesso no seu trabalho, nobre professor.

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