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domingo, 8 de maio de 2016

POLÍTICA NA PONTA DEA AGULHA





   Continuo aqui o “tricô” de minha mãe, tudo depende de puxar o fio certo da meada

   Nunca torcemos tanto. Torcemos contra bandidos e até contra mocinhos, Torcemos pela cassação de Eduardo Cunha e para que o país entre numa fase nova. E cedo para comemorações? Em política sempre será. A política é um terreno escorregadio de acordos impensáveis, de arrependimento pelo voto ou pela falta dele. 
   Num momento importante para a nação e numa data especial como hoje, lembro-me de minha mãe que me ensinou a pensar política como artigo de primeira necessidade. Lembro-me dela com o ouvido colado no rádio, quando a TV ainda era um luxo, acompanhando a apuração das eleições. Seu voto era justo, não era pelas amizades, era pela qualificação dos candidatos e, a cada quatro anos, deixa sua função de exímia tricoteira para tramar outras coisas: em quem votaria? Por que votaria? Os candidatos passavam por uma espécie de sabatina secreta em que ela e meu pai eram os juízes.
   Eu não poderia ser outra, se não filha de minha mãe. Nascida no interior de SP, filha de comerciantes,  Dona Anna nunca deixou de ter opinião, num tempo em que as mulheres não davam sequer palpites sobre “assuntos sérios”. Ela lamentava não ter estudado, teria sido ótima professora ou enfermeira, expressava sua revolta por ter nascido num tempo em que só os homens estudavam, como meus tios que foram enviados a colégios particulares, enquanto que suas irmãs tinham de se contentar em costurar e bordar o enxoval que os varões levariam para o internato. 
   Alguns deles voltavam em pouco tempo e minha mãe sonhava em ocupar a vaga que eles deixaram por tantas razões. Até por isso, ela nunca obrigou as filhas fazerem enxoval, nos empurrava para a escola, quis filhas professoras, acabou tendo uma e, de quebra, também uma jornalista. Lembro-me de su alegria no dia em que ganhei o primeiro concurso de redação. Nunca se opôs à minha vocação de enfileirar letrinhas em vez de pontos na agulha.
   Se estivesse viva, minha mãe jamais se omitiria em discutir nosso momento político. Diria que Dona Anna era diferente, sabida quando o assunto era ditadura ou democracia. MDB ou Arena. Meu pai tinha tendência comunista, o que as vezes criava pânico lá em casa porque vivíamos um tempo duro, mas também são boas as lembranças que tenho dele torcendo pelos russos no período da Guerra Fria. Torceu até por Laika, a cachorrinha astronauta, quando os soviéticos enviaram para a Lua. 
   Política lá em casa era assunto cotidiano, tema de discussões acaloradas, conchavos entre os tios e vizinhos. O rádio embalava esses sonhos, além das músicas de orquestra e do vozeirão de Orlando Silva. O Brasil é sobretudo um país apaixonado, não apenas por sambas e boleros, mas pela política além do futebol. Não estranho que hoje tenhamos nas discussões uma postura de torcidas. É ruim pela passionalidade, ótimo pelo envolvimento, não temos sangue de barata.
   Na semana que começa teremos um decisão importante, vem aí a votação do impeachment. Se minha mãe estivesse viva, daria seus palpites, teria ajudado a formar a opinião de pelo menos uma dúzia de vizinhos. Seu tricô nunca foi feito apenas de novelos de lã, não dava pontos sem nó, combinava cores, fazia peças em vários tamanhos, escolhia o desenho político que queria para seu país. Continuo seu tricô com agulhas mais pontudas e que se cumpra o desejo popular. A justiça depende de puxar o fio certo da meada para criar a tessitura. (Crônica de celia.musilli@gmail.com página 4, caderno FOLHA 2, espaço CÉLIA MUSILLI, domingo, 8 de maio de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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