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sábado, 7 de maio de 2016

ENTRE CACOS, BUCHAS E JATOBÁS


   “Vamos brincar de casinha?” Quem foi criança nos meados dos anos 1960 e que já viveu por volta desse tempo, deve lembrar-se da expressão, principalmente as meninas. 
   Era uma brincadeira muito comum, na época, principalmente no meio rural ou cidade pequena. Juntávamos o que havia no entorno e montávamos a nossa “casinha”, brincadeira mais pertinente às meninas, mas que não deixava de ser admirada pelos moleques que, para não serem chamados de mulherzinha, contentavam-se em desmanchar o nosso brinquedo. 
   E o que é que tínhamos para montar nossa casinha? No sítio de meus avós, no interior de São Paulo, pouca coisa ou quase nada: a louça ficava por conta dos cacos que recolhíamos, se fossem coloridos, melhor ainda, pois transformavam-se em jogos de porcelana; as panelas, umas medidas de leite em pó, tipo panelinhas, adaptadíssimas, onde fazíamos comidinha, com água, folhas e mato. As caixas de fósforo serviam como rádio, mesas, cadeiras, dependendo do tamanho da casa. Havia pomares e jardins, qualquer galho ou flores que enterrávamos no chão; também não podiam faltar os animais, feitos com buchas vegetais ainda verdes em grande quantidade na roça, nas quais colocávamos perninhas e rabinhos usando gravetos de madeira. Os bois e porcos gordos eram os jatobás, lindos, de cor marrom, que encontrávamos por todo o quintal. E ainda podíamos colocar cortinas feias do Melão de São Caetano, com suas frutinhas coloridas expondo as sementes. E as casinhas ficavam lindas!
   Com pouca coisa, porque não havia esse tipo de lixo industrializado que existe hoje, fazíamos grandes coisas, brincando e sonhando até cansa. Daí era só dar uma rasteira na casinha e deixá-la no quintal, desfazendo-se, ou isso também poderia ser feito pelos primos que, não podendo ser protagonistas de um brinquedo feminino, se tornavam os bárbaros vilões. 
   Minha prima Maria José, um pouco mais nova, inventava outras brincadeiras: esconde-esconde, por exemplo. Eu a deixava escondida um tempão, entediada por achá-la tão bobinha! Mas adorava vê-la vender ovos e galinha para sua mãe e as tias, quando ela dizia, colocando as mãozinhas na cintura e imitando um vendedor: “Dona Domingas, a senhora quer comprar ovos?” E ia tirando os ovos invisíveis de uma cesta também invisível. E as galinhas. E a gente morria de rir. 
   Não tínhamos brinquedos de verdade, pelo menos não me lembro. Lembro-me de uma boneca, de matéria plástica, que ganhei aos dez anos, quando eu já nem queria saber de brincadeira de criança, mas fizemos seu batizado, com direito a missa de mentirinha e tudo, juntando as meninas da escola. Antes disso, nem bicicletas, nem bonecas nem quebra-cabeças ou Lego.
   Mas tínhamos uma cabeça boa e uma criatividade melhor ainda. As bonecas colhíamos no milharal. Eram loiras, ruivas, castanhas. Puxava os cabelos das espigas de milho verde, colocávamos pedaços de pano como roupas e as bonecas apareciam lindas, maravilhosas, verdadeiras “Barbies” para os dias de hoje.
   Com meu irmão e meus primos brincava com as burquinhas ou bolinhas de gude e com cavalo de pau. As bolinhas eram lindas, com cores diferentes. No jogo, a gente ganhava e perdia, roubava, brigava, saia correndo com as burquinhas, apanhava, chorava, escondia. Para fazer um cavalo de pau e e correr pelos pastos e quintais qualquer pedaço de madeira servia. Enjoava, parava, jogava o cavalo de lado e partia para outras aventuras, onde nós mesmo providenciávamos os brinquedos, as brincadeiras e as regras, tirando no par ou ímpar. 
   E assim, o tempo dia passando, talvez rindo de nossas brincadeiras e registando que, com o passar dele, tudo isso ia acabar em lembranças, coisas boas que não voltam nunca mais e que ninguém poderá repetir porque o tempo mudou a forma e a cor, e as brincadeiras de crianças, hoje, são tão diferentes!
   Mas sempre haverá uma pontinha de alegria que vai fazer brilhar os nossos olhos, talvez umedecê-los e volvê-los ao passado, ao nos depararmos, por esta vida, com algum caco de louça colorida, buchas verdes e penduradas no pé e essa fruta meio desconhecida, dura, marrom e brilhante, com um nome tão macio como a sua polpa, o jatobá. ( ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 2, espaço DEDO DE PROSA, FOLHA RURAL, sábado, 7 de maio de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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