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quarta-feira, 6 de abril de 2016

COISAS QUE ME LEMBRAM MEU PAI



   Alguns leitores acham que eu me exponho demais aqui na coluna, tanto em termos políticos como pessoais. Ora, pedir a um cronista que não se exponha é como pedir a um nadador que não se molhe. A exposição diária é meu ofício; salva-vidas não pode ter medo de água, alpinista não pode ter medo de altura, escritor não pode ter medo de escrever. 
   Lendo as memórias de Nelson Rodrigues, reunidas no livro “A menina sem estrela”, noto que o mestre não tem medo de expor inteiramente os seus piores fantasmas Essa sinceridade intelectual, que não conhecia limites morais e ideológicos, lhe causou muitas inimizades. A certa altura do livro, Nelson queixa-se da solidão, após muitos o abandonarem por suas opiniões políticas (nas crônicas) e suas personagens atormentadas (nas peças e contos). 
   Quem sou eu diante de Nelson Rodrigues? Positivamente, nada; talvez um grão de poeira ou mostarda. No entanto, ele é um dos meus heróis. E há outro motivo que aproxima de Nelson: ele me faz lembrar meu pai. 
   Não que meu pai fosse parecido com Nelson. É que Paulo adorava suas obras e, às vezes, tentava imitar a voz do autor ao telefone. Sempre que vejo o nome “Nelson Rodrigues”, em qualquer lugar ou circunstância, penso imediatamente em meu pai. É quase como se eu estivesse conversando outra vez com ele. 
   Outra coisa que lembra meu pai é sinuca. Semana passada, no elevador, um vizinho carregava um porta-tacos igual ao que meu pai tinha. Conversamos um pouco  sobre esse lendário “esporte”, que Paulo gostava de praticar diariamente com seus amigos Miranda e Flávio. Em um clube que não existe mais. 
   Sempre que podia, eu estava com me pai nesses finais de tarde, em torno da mesa de forro verde. Por alguns anos eu acompanhei a jornada de sinuca dos três amigos, mas nunca, em momento algum, pedi para tomar parte no jogo. Apenas observava os movimentos geométricos das esferas coloridas sobre a superfície de feltro. Física pura. 
   Meu pai era um craque da sinuca. Diz a lenda que jogou com Carne Frita, o Pelé dos tacos. Não sei se ganhou ou perdeu; ele era modesto nesse sentido. Apenas confirmava ter conhecido o lendário jogador, digno de figurar em um livro de João Antônio. 
   Outro nome que me faz pensar em meu pai é o de Boris Pasternak. Leitor dos russos, Paulo sempre disse que o autor de “Doutor Jivago” era um digno sucessor dos mestres do século XIX (Tolstói, Dostoiéviski, Turguêniev). Ontem eu pensei muito em Pasternak ao traduzir amadoristicamente – do inglês, não do russo – os versos que ele escreveu ao ser obrigado pelos comunistas a recusar o Nobel de Literatura: “Sou um gangster ou homicida?/De que crime serei eu culpado?/Fiz o mundo inteiro, toda vida/ Chorar meu país belo, amado.// Mesmo aqui, a um passo do fim,/ Sei que a crueldade, apesar? Do poder das trevas sobre mim,/ Sob a eterna luz vai se esmagar”.
   Como eu queria que meu pai pudesse ler os versos de Pasternak hoje... (FONTE: Fale com o colunista: avenidaparana@folhadelondrina.com.br página 3, caderno FOLHA CIDADES, espaço coluna AVENIDA PARANÁ – por Paulo Briguet, terça-feira, 5 de abril de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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