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domingo, 14 de fevereiro de 2016

'NÃO MEXE COMIGO'



   A presença feminina no carnaval, em blocos e baterias, também reconfigura o lugar da mulher brasileira

   A presença feminina chamou atenção no carnaval de 2016. Não a presença conhecida das mulheres bonitas e seminuas, mas uma presença guerreira que abria espaço inclusive em mais baterias formadas por mulheres tocando tamborins, cuícas e surdos que chegam a pesar sete quilos. De Porto Alegre a São Paulo foi uma festa, a ponto de algumas pesquisas apontarem para a presença de cerca de 60% a 70% só de mulheres no carnaval paulistano. 
   Se por um lado isso demonstra abertura e algum avanço, por outro uma pesquisa do Data Popular, encomendada pelo site Catraca Livre, mostrou que 49% dos homens consideram que mulheres que participam de blocos “não são direitas”. Se o resultado demonstra que o machismo continua como um traço infeliz do comportamento dos brasileiros, a própria imagem “mulher direita” empregada na pesquisa é de um anacronismo de fazer chorar. Nos anos 1950/60 era forte o preconceito que dividia as mulheres entre “direitas ou tortas”, em outras palavras, feitas para casar ou para serem usadas. 
   Mais de meio século depois, a pesquisa realizada em 146 municípios repete o jargão na pergunta e metade dos homens assinala a alternativa que fazia parte do pensamento e da linguagem de seus avós. Num intervalo de mais de 50 anos, as mulheres foram à luta, fizeram a revolução sexual, incorporaram com os anticoncepcionais a ideia de que casamento e maternidade são escolhas, não imposições, mas o conceito “mulher direita” ainda aparece em bocas desavisadas como o rabo que os homens não conseguem esconder embaixo do tapete cultural. A sociedade brasileira ainda vive de extremos: da discriminação feminina à sexualização precoce de meninas de 10 anos, rebolando como adultas em bailes funks, há uma falta de cuidado e compreensão com a mulher, seu papel social e sua imagem, mas isso está em franca transformação. 
   Neste sentido, as baterias que parecem ter mudados de mãos com mais ênfase neste carnaval são importantes como representação de uma tomada de atitude que não coloca as mulheres só como destaques seminus de carros alegóricos, nem as toma apenas como Rainhas da Bateria para ornamentar as alas dos ritmistas, num esforço que demonstrou muitas vezes que beleza é mais importante que o samba no pé. O carnaval não é mais apenas o lugar das mulheres lindas e às vezes desengonçadas que, num samba sofrível, iam para a avenida mostrar o corpo parcialmente encoberto por cristais Swarovski.
   Uma das baterias femininas mais importantes do carnaval paulistano é a do Ilú OIbé de Min, desde 2004 esse bloco de arte e cultura negra vem se destacando sob a coordenação de Beth Beli, pesquisadora de matrizes e expressões afro-brasileiras. É com surdos, tamborins e afoxés que cerca de 150 mulheres enfrentam o racismo e o machismo numa postura que substitui a imagem da boneca pela imagem da guerreira. Afinal, uma bateria bem tocada tem a mesma força dos tambores de guerra. Se for possível lutar e se divertir na avenida tanto melhor para as mulheres que fazem o debate cultural com cuícas e dança. Lição que a falecida Dona Vilma Santos de Oliveira, a Yá Mukumby, também deixou para Londrina em sua curta passagem de candomblé, canto e alegria. 
   Na consagração feminina no carnaval 2016 também não dá para esquecer a vitória da Estação Primeira de Mangueiras no Rio. Mangueira, substantivo feminino, somou sua força original à de uma guerreira cultural e à de uma guerreira sagrada: Maria Bethânia, homenageada pela escola, incorpora como ninguém a força de Oyá ou Iansã, a orixá dos ventos e das tempestades. A fusão revelou-se como fórmula perfeita que deu à Mangueira uma vitória histórica depois de doze anos sem o título. Por muito tempo, o refrão do samba-enredo : “Não mexe comigo, eu sou a menina de Oyá” vai ecoar como um grito que faz do carnaval não apenas uma festa de rua mas uma intervenção cultural que põe os pingos nos is, mostrando a força feminina para os ouvidos surdos e o machismo fora de ritmo ( celia.musilli@gmail.com página 4, espaço CÉLIA MUSILLI, caderno Folha 2, domingo, 14 de fevereiro de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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