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sábado, 14 de novembro de 2015

A MORTE DO CASARÃO MAL-ASSOMBRADO




    Morreu. Morreu sem direito a velório, missa nem caixão. Morreu como pagão, no esquecimento. Em longe dos holofotes com os quais era acostumado. Para os mais antigos, era jovem, forte, majestoso. Símbolo do progresso da cidade. Os mais novos, porém, já o viam como um idoso, decrépito, definhando em lenta agonia. Com o passar do tempo, os lambrequins coloridos que adornavam sua estrutura ganharam tons sombrios, o que contribuiu para povoar a imaginação de várias gerações de crianças curiosas.
   Ir ao casarão mal-assombrado de Wenceslau Braz, no Norte Pioneiro, cidade de 20 mil habitantes em que fui criado, era programa de fim de semana ou de gazeadas de aulas, sem o conhecimento dos pais, é claro. O casarão era o ponto de referência em terror na cidade, seguido de perto pelo “Tanquinho da Véia”,  talvez. Isso mesmo, “Véia”, pois uma lagoa modesta escondida em meio às taboas não é merecedora de dígrafos consonantais tão rebuscados. O casarão não,  era imponente, com seu telhado quatro águas em forma de pirâmide. A escadaria lembrava a de um zigurate.
   A atração ficava a cinco quilômetros do centro da cidade. A meninada seguida a pé, em bando, fazendo algazarras. Os veteranos assustavam os que iam pela primeira vez. Até chegar ao Centro de Tradições Gaúchas, já no extremo da cidade, o clima era de festa. Depois, ao pegar a estrada de terra, os mais medrosos já começavam a ficar apreensivos. O ponto onde a estrada de ferro cortava a estrada nos  últimos dois quilômetros, era um marco. A parte mais alta do telhado do prédio surgia na paisagem e, dali para a frente, as gargalhadas davam lugar aos sussurros.
     A fábrica de histórias começava a funcionar. Todos pareciam ter um parente mais velho que já viu uma alma penada por ali. Teve gente que jurou que o pai do tio de um amigo viu até uma mula-sem-cabeça que soltava fogo pelos olhos. Os mais novos riam, mas por mais absurda que fosse a história, eles não ousavam duvidar totalmente. Quando a trupe chegava na escadaria, eram poucos os que ousavam entrar. Não raro, algum moleque que já estava escondido previamente à espera dos rapazes, fazia as vezes de fantasma e colocava todo mundo para correr.
   Sem conservação, restaram apenas escombros do prédio de meados dos anos 1930, sede da fazenda onde funcionava a Serraria dos Malufs.  Ainda sem o advento da conscientização ecológica, boa parte da floresta nativa deixou o Norte do Paraná pelas locomotivas que ali paravam. Porém, a vingança tardou  mas não falhou.  Alguns exemplares de perobas e araucárias sobreviveram para ver ruir o ícone máximo do império do machado.
   De repente,  lembrei de um trecho de uma poesia de Carlos  Drummond de Andrade, que diz: “... Não amadureci ainda bastante/para aceitar a morte das coisas/que minhas coisas são, sendo de outrem...”. É o fim das coisas. É o fim dos tempos. Difícil acertar. Em uma paragem estagnada, que em nada lembra a pujança de outrora, é difícil cobrar preservação histórica. ( CELSO FELIZARDO, jornalista da FOLHA, página 2, espaço DEDO DE PROSA, FOLHA RURAL, sábado. 14 de novembro de 2015, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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