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sábado, 28 de novembro de 2015

A CARTA




   Nas minhas infância e adolescência havia um grande número de pessoas analfabetas e aquelas que apenas assinavam o nome, ainda assim com dificuldade, e liam algumas palavras.
   Meu avô, por exemplo, escrevia e lia palavras e fazia contas, além de marcar, por meio de sinais, quantidades, dias trabalhados, fases da lua, medidas, além de lidar muito bem com dinheiro. Ele gostava de manter contato com seus parentes e para isso pedia para que eu escrevesse as cartas. Ele falava, eu escrevia, depois lia e ele , já idoso e emotivo, enchia os olhos de lágrimas.
   Não era tão fácil para nós, escribas, que tínhamos que manter a fidelidade, porque os mais velhos tinham uma linguagem bem peculiar, umas saudações e perguntas muito parecidas. “Escreva aí” – ele dizia, com seu vozeirão de italiano, forte e ao mesmo tempo afetuoso. “Saudações! Meu estimado primo! Pego na pena para mandar minhas notícias e, ao mesmo tempo, receber as suas. Espero que esta o encontre gozando a mais perfeita saúde. Nós aqui. Como vai o Germano? E o Mário? E a Rosália, já sarou das suas dores nas pernas? Sem mais, esperando breve resposta, despeço-me com um forte abraço. Mário Frederico”.
   As cartas eram sempre muito parecidas, tanto as que eu escrevia, como as que ele recebia e eu lia para ele, que ficava muito feliz e emocionado.
   Mas não eram só pessoas mais velhas que eram analfabetas. Havia homens, mulheres e até muitos jovens, além de crianças que não frequentavam a escola ou iam, forçadas, bem mais crescidinhas.
   Certa vez, uma vizinha me procurou para escrever uma carta ao seu namorado. Ele havia se mudado pra São Paulo, onde fora trabalhar para ganhar a vida, uma vez que na cidadezinha não havia serviço e praticamente vivia do trabalho rural, sendo que a maioria era boia-fria.
   Ela era bem jovem, talvez uns 16 ou 17 anos. E foi ditando: “Eu estou com saudades, com muita  saudades. Você precisa voltar logo porque senão não vou aguentar. Toda vez que toca, no alto falante, aquela nossa música, eu começo a chorar”.
   Eu perguntei, então: “É a música “A carta”, do Erasmo Carlos?” Como o namorado dela se chamava Erasmo, já pensei na música. Estava pensando em caprichar, baseando-me na letra, que era uma cartinha, “Não”, ela respondeu. É a música ‘Muito nova pra mim’  do Demétrius”. A música falava de um bilhete que uma menina mandou para o moço querendo namorá-lo. Ele achou ela nova demais para ele, etc e tal e não aceitou. Tempos depois ele mandou um bilhete pedindo-a em namoro e foi a vez dela se vingar. Respondeu o bilhete, dizendo: “Continuo sendo nova pra você”. Alguma coisa triste assim.
   Não entendi muito bem e continuei escrevendo as rimas de amor e dor, eterna sofrência dos apaixonados e simplórios. Ao final da cartinha, que ia endereçada ao amado e devidamente colada no correio da cidade, não contive minha curiosidade e perguntei: “Tem certeza que essa música vai fazer seu namorado voltar para cá?”. E ela respondeu, com simplicidade. “Sim, porque essa é a nossa música. Mas o que vai fazer ele voltar mesmo é você escrever aí na carta que eu estou grávida”. ( ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 1, espaço DEDO DE PROSA, FOLHA RURAL, sábado, 28 de novembro de 2015, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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