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domingo, 6 de setembro de 2015

O ATO DE DEVOLVER A PALAVRA



        


   Mais que uma palestra, falar sobre Maura Lopes Cançado no Londrix é um modo de ampliar sua voz

   A escritora mineira Maura Lopes Cançado  (1929-1993 escreveu apenas dois livros: “Hospício é Deus” – mistura de autobiografia e diário (1965) – e “Sofredor do Ver” (contos,1968). Considerada esquizofrênica, passou a maior parte de sua vida em manicômios onde concebeu grande parte de suas obras. Embora despertem muito interesse, seus livros quase não foram analisados, quase sempre, a condição de louca é lembrada primeiro do que sua condição de autora.
   Na próxima quinta-feira (10), tenho um desafio falar sobre a escritora no Festival de Literatura em Londrina – Londrix. Isso requer uma abordagem sobre as relações entre a arte e a insanidade, tema que o filósofo Michel Folcaut dedicou-se inteiramente ao escrever História da Loucura, ponto de partida de qualquer trabalho contemporâneo dedicado à investigação do assunto. Em seu livro, ele deixa claro que durante séculos o louco foi completamente excluído não só da sociedade como da cultura.
   O objetivo da palestra é traçar um perfil biográfico de Maura Lopes Cançado, apresentando-a ao público, bem como mostrar como ela tornou-se uma escritora relativamente conhecida, entre os anos 1950 e 60, quando foi colaboradora do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, no qual conviveu com Carlos Heitor Cony , Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim que empenhou-se em publicar seu livro  “Hospício é Deus”, quando ela se encontrava internada no Hospital Gustavo Riedel. Vale a  pena enfocar a trajetória que ela cumpre como autora e paciente psiquiátrica, neste sentido, seu depoimento no diário é peça-chave de história da loucura  no Brasil ao enfocar os tratamentos muitas vezes desumanos , a que foi submetida junto com suas companheiras de hospício que estão presentes não só no diário como tornaram-se personagens de seus contos.
   Se “Hospício é Deus” é um livro relativamente conhecido, quase nada se sabe de “P Sofredor do Ver”, coletânea de doze contos que tive a oportunidade de analisar integralmente na minha dissertação de mestrado a partir da linguagem, numa abordagem surrealista. Os dois livros são raros, mas “Hospício é Deus” ainda pode ser encontrado nos sebos. O “Sofredor do Ver” estava desaparecido do mercado desde a primeira ediçãode 1968. Em 2010 foi republicado em edição de luxo pela Confraria dos Bibliófilos  do Brasil para voltar, na sequência, à sua condição de raridade tendo em vista que a nova edição tinha exemplares numerados que logo se converteram outra vezem objetos de luxo, alcançando preço impraticáveis.
   Pela força de sua literatura e o quase desconhecimento de sua produção por grande parte dos leitores brasileiros, acredito que uma abordagem da obra de Maura Lopes Cançado seja do interesse dos que querem conhecer uma escritora considerada revelação nos anos 60 e que submergiu ao completo ostracismo nas décadas seguintes. A loucura sempre fez sombra à sua obra. No momento, várias editoras ensaiam a reedição de seus livros, bem como o lançamento de uma possível biografia. Trata-se de um conteúdo que interessa e pessoas que se dedicam à literatura quanto àqueles que trabalham com pacientes psiquiátricos. Para a autora, a literatura foi um instrumento de denúncia, redenção da sua condição de doente mental, foi através dos livros que ela tentou saltar os muros dos  manicômios. Mais de 50 anos depois, minha função, como a de outros pesquisadores, é apenas lhe devolver a palavra. celiamusilli@terra.com.br  ( Página 4, FOLHA 2, espaço CÉLIA MUSILLI , publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 6 de setembro de 2015).  

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