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domingo, 27 de setembro de 2015

LIÇÃO DE PRIMAVERA



   É pelo milagre dos neurônios e sinapses que uma pessoa vem a nós sem voltar de fato ao mundo


   “A arte de perder”, de Elizabeth Boshop, é um dos poemas mais lindos que conheço. Num trecho diz  “Perdi duas cidades lindas./ E um império/ Que era meu, dois rios, e mais um continente,/ Tenho saudade deles. / Mas não é nada sério”.
   Talvez, o conforto de não levar a vida tão a sério seja a proposta para as pequenas dores. Mas o que fazer com as grandes? Perder uma chave ou a casa inteira dói. Mas perder um amigo jovem, como aconteceu comigo há quase um ano, me põe a pensar que a perda irreparável não é a dos lugares, nem das paisagens. O problema de perder pessoas é que elas se tornam invisíveis e nisso reside um dos maiores mistérios da morte que tira do nosso campo de visão a pessoa, seu andar, seus gestos. Suprime da audição sua voz, do olfato seu cheiro que, para mim, é uma das coisas mais significativas quando se trata de presença. Cheiro é difícil de recuperar, de ressignificar. Cheiro é percepção familiar, mais íntima, a que pouco têm acesso em se tratando de outra pessoa. Talvez por isso os perfumes sejam tão marcantes como memória do corpo.
   Quando ocorre a perda total do contato – quando não mais se vê, nem se escuta uma pessoa – sobrevivemos graças à virtualidade que existe em  nosso cérebro muito antes dos computadores. É lá, pelo milagre de neurônios e sinapses, que a pessoa vem a nós sem voltar de fato ao mundo. Isso ganha com a informática uma espécie de materialidade extra que se não vence a morte, a ludibria.
   Quando perco um amigo que era meu contato numa rede social, conservo sua página se a família decidir por mantê-la. É assim que “recebo” de vez em quando um poema, uma fotografia, um conselho ou tenho a percepção de um  pensamento de  quem não está mais aqui.
   Nas lembranças cabem pessoas inteiras ainda que tenhamos que colar caquinhos, criando um quebra-cabeças particular de peças que formam nossas relações nesse mundo. Se no momento de dor maior queremos às vezes apagar memórias – por uma questão de autopreservação e defesa – elas depois nos revisitam quando estamos mais tranquilos e aí sim, doendo ainda, mas consolados pelo tempo, às vezes reencontramos a mãe, o filho, o amigo que se foi e percebemos detalhes que nem em vida havíamos notado.
   Foi assim com um anel que sempre traz de volta minha mãe, um banco vazio de jardim que para sempre me trará meu pai. Então, a finitude ganha um  recomeço, a transitoriedade começa a fazer sentido através daquilo que não colamos em vida, mas recompomos com a morte que faz eclodir detalhes na busca da reconstrução que se foi.
   Trazer um assunto triste em plena primavera não é uma contradição.  Meditando sobre a dor de pessoas que perderam um ente querido lembro-me de brotos de roseira e galhos novos de árvores que pareciam secas.
   O tempo todo, a natureza nos ensina que nem tudo é ausência, nem deserto. E se as coisas não são sempre iguais, resta a esperança num outro florescimento, num broto, numa folha nova que surge às vezes das lembranças. E dessa forma, misturando virtualidade e memória, que  muitas vezes curo minhas feridas, colando sobre os machucados um unguento de plantas até eles virem a cicatriz que recobre a carne viva. Neste ponto, lembro-me de um verso final do poeta Claudio  Willer que cola sobre o desastre existencial uma palavra que considero absoluta: “Sobreviveremos”. Ela é a conclusão de um poema que integra a  série “Visitantes” e  faz todo o sentido. Não se esqueça disso quando perderem filhos, não se esqueçam disso quando perderem continentes, todos nós perdemos alguma coisa o tempo inteiro, essa é a grande a lição de mais uma primavera, mistério do renascimento. ( celiamusilli@terra.com.br página 1 FOLHA 2, espaço CÉLIA MUSILLI, domingo, 27 de setembro de 2015, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA). 

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