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domingo, 19 de julho de 2015

ARTE A SER INTERPRETADA




Hoje vivemos no Brasil uma crise de interpretação de obras de arte.


   Outro dia recebi de uma amiga o link com o trecho do espetáculo “O Balcão”, de Jean Genet, dirigido pelo argentino Victor Garcia e encenado no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, em 1967. Logo nas primeiras cenas fui tomada por imagens aéreas, atores subindo e descendo rampas, conduzidos por guindastes, numa cenografia caprichada, com atores como Célia Helena, Raul Cortez,  Jofre Soares, Sérgio Mamberti, a própria Ruth Escobar e outros grandes mergulhados em interpretações vigorosas. Fiquei pensando como naqueles anos duros o teatro e a arte em geral eram capazes de provocar o público, tirando-o da passividade. O que fazia no palco provocava a libido. Era o teatro/paixão do qual ainda vemos sinais importantes por aí, bem longe do circuito comercial dos “famosos” que frequentam o Faustão.
   Na montagem de “O Balcão” havia o toque de mestre de Wladimir Pereira Cardoso, que fez os cenários que dão a dimensão da complexidade desse espetáculo nos tempos em que os recursos técnicos não eram a metade do que são hoje. Mas havia o prazer pela engenhosidade, a carpintaria, o desafio de encenar o impossível. Wladimir, que foi casado com Ruth Escobar, praticamente morava no teatro. Para essa montagem passou 20 horas por dia trabalhando com sua equipe, numa espécie de obsessão criativa.
   Visto hoje, o espetáculo também impressiona pela ousadia da encenação de um texto de Jean Genet que toca em tabus através da crítica a instituições seculares: a igreja, o poder judiciário,  policial e político colocados em xeque no bordel de Madame Irma, onde os mais diferentes tipos confrontam suas perversões . Escrito nos anos 50, ele mantém a atualidade e serve  como carapuça ao cenário da realidade.
   Victo Garcia encenou quatro espetáculos no Brasil – “O Balcão” e “As Criadas” de Jean Genet. “O Cemitério de Automóveis” – na verdade, um mix de textos de Fernando Arrabal -, e “Yerma” de Frederico Garcia Lorca – todos produzidos  por Ruth Escobar. O diretor  argentino causou furor no Brasil e na Europa. Ouvi de quem assistiu aos espetáculos dele aqui e na França que o impacto na época foi grande . O diretor andava pelo fio da ousadia com suas próprias pernas, de forma original.
   Depois de assistir a um trecho de “O Balcão” , fui atrás de mais informações e percebi claramente que o teatro dos anos 60/70, apesar da ditadura, tocava em temas que hoje divide opiniões nas redes sociais, como o uso da cruz para outro fim que não o religioso. O programa do espetáculo “O Cemitério dos Automóveis”, dirigido por Victor Garcia, trazia um homem deitado sobre o tanque de uma motocicleta com os braços em forma de cruz, como alusão ao Cristo como um mártir da era industrial. Será que isso hoje causaria censura? Acredito que sim. Depois que vi até o Papa ser censurado porque recebeu de Evo Morales uma cruz esculpida por um padre jesuíta que tem na base a foice e o martelo, acredito que estamos retrocedendo não só sob os pontos dos costumes, mas sob o ponto de vista da capacidade de fazer a leitura correta dos signos sem o moralismo que transforma em tabu e pecado o que é apenas crítica. Que falta faz as aulas de interpretação de textos ou, mais exatamente, de interpretação da arte. ( TEXTO ESCRITO POR CÉLIA MUSILLI  celiamusilli@terra.cim.br página 4, FOLHA 2,  espaço  CÉLIA MUSILLI, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo. 19 de julho de 2015). 

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