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domingo, 28 de junho de 2015

LITERATURA E APARTHEID


Ainda há muito a se dizer sobre as obras de Carolina de Jesus e Maura Lopes Cançado
   


   Duas escritoras brasileiras que tiveram seu apogeu nos anos 60,  despertam cada vez mais a atenção dos pesquisadores por apresentarem uma obra instigante. Neste âmbito, talvez Carolina de Jesus  seja mais conhecida do que Maura Lopes Cançado. Carolina é autora de “Quarto de despejo- diário de uma favelada”, lançado em 1960 depois que o jornalista Audálio Dantas descobriu sua obra em 1958 ao fazer uma reportagem para a revista O Cruzeiro, na favela Canindé, em São Paulo. Ela tinha muitos cadernos com poesia, romance, anotações variadas, mas o jornalista interessou-se mesmo pelo seu diário, que contava a vivência de uma mãe solteira, que sobrevivia catando papel de dia, enquanto escrevia à noite. A primeira edição do livro vendeu 10 mil exemplares só na primeira semana após seu lançamento , depois foi traduzido em vários países do mundo. Hoje, parte do material deixado por Carolina encontra-se microfilmado e faz parte dos acervos de vários centros de documentação do Brasil e do mundo, conforme relato da pesquisadora Elena Pajera Peres, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em vídeo realizado pela Fabesp. Ela é uma pesquisadora que se ocupou da obra de Carolina apontando não só seu valor literário, mas seu valor histórico, sociológico e antropológico, entre outras coisas. 

   Assim como Carolina de Jesus, Maura Lopes Cançado é mineira, mas viveu no Rio, onde escreveu o diário “Hospício é Deus” que tive oportunidade de analisar na dissertação do mestrado. Entre as duas autoras, há pontos em comum, talvez o mais significativo seja o fato de darem testemunhos importantes sobre ambientes marginalizados, como a favela e os hospícios, onde Maura passou praticamente a vida toda internada, era considerada esquizofrênica
   Personagens de grandes cidades brasileiras – Carolina em São Paulo e Mauro no Rio – ambas foram contemporâneas e sofreram das mesmas agruras por serem mulheres marginalizadas: uma favelada, a outra louca, mas o que se levanta acima dessa condição é um olhar sobre realidades das  quais saberíamos menos se não fosse esse tipo de literatura testemunhal. 
   “Quarto de Despejo” compara a favela a um depósito de gente pobre. Não muito diferente dos hospícios que, na época de Maura, eram tomados como depósito de desvalidos: de alcoólatras a prostitutas, chegando ao absurdo, em alguns casos, de comportarem todo tipo de gente negligenciada   socialmente, sendo em menor número propriamente os loucos. 
   Retratos sociais da desigualdade – que ainda permanece como condição existencial de muitos brasileiros – os livros dessas duas autoras fornecem uma visão que nem todos alcançariam, não fosse o papel de registro da literatura confidencial que, por acaso, chegou à publicação, enquanto muitos outros livros da mesma natureza são completamente desconhecidos,  
   A pesquisadora Raffaella Fernandez, da Unicamp, também trabalha com material inédito de Carolina de Jesus, cerca de 50 cadernos, somando aproximadamente 5 mil páginas, entre as quais há sete romances. Obra monumental de quem “não tinha alma de favelada, mas nasceu para brilhar”, segundo Audálio Dantas. 
   De Maura Lopes Cançado, é mais conhecido o diário “Hospício é Deus”, já o livro de contos “O Sofredor do Ver”teve a primeira edição de 1968 esgotada há duas décadas, até ganhar nova publicação da Confraria dos Bibliófilos do  Brasil em 2013, mas trata-se também da edição já esgotada. Produzida em formato artesanal, ilustrada e com exemplares  numerados , foi essa edição que analisei na minha dissertação do mestrado concluída na Unicamp em 2014, e que hoje se encontra cotada a peso de ouro como raridade em poucos sebos do Brasil. De lá para cá, há rumores de que seus dois livros serão republicados ainda este ano, coisa a se conferir. Há tempos existe um interesse profundo por sua obra, mas nada de concreto em relação à reedição de seus livros escritos, como os de Carolina, como literatura em carne viva. Que os planos saiam do papel, ou melhor, encontrem a sua forma. ( Texto  de  celiamusilli@terra.com.br   página 4  FOLHA 2,  espaço CÉLIA MUSILLI, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 28 de junho de 2015),

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