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domingo, 31 de maio de 2015

MINHA ODE AO GATO


        Como Neruda, decifrei arquipélagos, cidades e a botânica mas nunca decifre inteiramente um gato.

   Outro dia encontrei a foto do pintor Jean-Michael Basquiat com um gato no colo. Lembrei-me que muitos artistas gostam de gatos e são inúmeros os escritores que os têm ou tiveram como bichos de estimação. Lembrei-me que entre os poemas mais bonitos sobre animais está “Ode ao Gato” de Pablo Neruda, no qual ela diz que sabe quase tudo sobre a Terra mas não consegue decifrar  o gato “cujos olhos tem números de ouro”.
   Fiquei pensando na minha própria paixão por gatos, amor antigo que os primos que conviveram comigo na infância não esquecem. Do meu primeiro felino – eu não devia ter nem cinco anos – lembro-me que se chamava Misho, listrado como um tigre, autêntico exemplar “xadrez” desses que não deixam dúvida sobre sua vira-latice explícita. Depois vieram outros, como a gata preta e branca que tive ali pelos meus dez anos e que dava cria a cada seis meses, para angústia da minha mãe que não sabia o que fazer com os filhotes num tempo em que a castração de animais domésticos não era comum como hoje. Descendentes desta gata devem vagar até hoje pelas ruas do Norte do Paraná.
   Quando jovem, já morando em república para estudar jornalismo, apareci com uma gatinha em casa para espanto de algumas amigas que no início estranharam e depois também se derretiam pela bichana. Ela passava os dias com a gente e freqüentava à noite nossas rodas de violão atestando sua condição de boêmia, até por isso seu nome era Mia. E vivia em grau de igualdade com os universitários.
   Também tive gatos nos anos de meus dois casamentos. Meus parceiros nunca se importaram, se apegaram aos bichos compreendendo essa preferência que trago da infância e que acho que se incorporou à minha personalidade. As pessoas misturam seu temperamento aos dos bichos que têm durante a vida, por muitos anos seguidos. Até por isso,  já tive amigas que me lembravam poodles e amigos com a personalidade fiel de um pastor alemão, explico que isso não tem nada de ofensivo, trata-se apenas da simbiose entre animais e seus donos, sendo que gatos e cães também tomam nossos hábitos compondo parcerias incríveis.
   Agora mesmo, enquanto  escrevo  esta crônica, Bambino meu gato tigrado, dorme profundamente aqui do meu lado, imitando minha siesta sagrada embora mais curta. Para mim, basta uma soneca depois do almoço, mas Bambino a estica por horas seguidas, até acordar ali pelas 16 horas, confirmando que os gatos dormem mais de dia do que de noite, quando ficam espertos ao menor vestígio de lua.
   Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa e Ferreira Gullar, tiveram ou têm gatos. Assim como |Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Ezra Pound e Ernest Hemingway. Penso que os gatos se adaptam aos escritores porque são silenciosos e capazes de ficar horas sobre as escrivaninhas como se entendessem a atividade concentrada de quem lida com palavras. Eles não dizem nada, mas sua presença forte e ao mesmo tempo autônoma embala a função de quem vive de ideia e precisa de reflexão para pegar os temas pelo rabo, como faço agora.
   Até por isso, fiz algumas crônicas sobre gatos. Uma delas começou inspirada pelos profundos olhos azuis de um siamês que me acompanhou por anos seguidos e que, nas manhãs de Londrina, sempre aparecia  na sala no horário em que a luminosidade refletia ainda mais seus olhos vivos. Foi por seus olhos que entrei para sondar veias e mapas para escrever uma crônica que acabei publicando em livro. Ela retrata minha admiração por Alice, personagem de Lewis Carroll que tinha ao seu dispor um mundo maravilhoso, construído a partir de grande imaginação. A crônica inspirada pelos olhos de meu gato se chama “Eu me maravilho, tu te maravilhas” e fala de um mundo se descortinando a partir dos olhos de um gato, aqueles olhos de ouro como no poema de Neruda.
   Se Bambino acordasse aqui do meu lado, neste momento, seus olhos verdes me inspirariam outro texto, talvez um poema, porque eles sõ muito enigmáticos e para a literatura nada melhor que um enigma, ainda que a gente nunca o decifre.
   Mas são quase 16 horas e meu gato não acordou ainda, embora faça ruídos e ressonâncias felinas que dão conta do tamanho de sua preguiça neste momento. Aproveito seu sono para explorar outras histórias de gatos e, quem sabe, possa compreender seus sonhos, sua cabeça enluarada, seu desejo de vagar à noite, atravessar telhados, namorar ruidosamente, subir em árvores, arranhar sofás, pedir ração e leite insistentemente, entrar em caixa como se habitasse condomínio, pegar borboletas reais e imaginárias , caçar pardais em duas tentativas – uma quase sempre frustrada- beber água em torneiras, tomar sol nas janelas como uma escultura egípcia, subir nas mesas, entrar nas gavetas para saber o que tem dentro, tirar meias e camisetas para fora, nos acompanhar até a porta quando saímos de casa, esperar pacientemente nossa volta, miar de alegria ou por impaciência, miar, miar e miar como uma orquestra afinada só para marcar presença. Enfim, fazer tudo o que compete aos gaos, essas criaturas que se mostram e se escondem como um jogo, um número de mágica, numa eterna parceria de sedução com seus donos. Como Neruda, decifrei arquipélagos, cidades e a botânica mas nunca decifrei inteiramente um gato. Daí todo seu encanto. ( Texto escrito por CÉLIA MUSILLI celiamusilli@terra.com.br  página 4, FOLHA 2, espaço CÉLIA MUSILLI, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 31 de maio de 2015).

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