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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

LEMBRANCINHA


O menino foi deitar depois da ceia de Natal na casa duma tia, a casa cheia de parentes e papéis de embrulho dos presentes, e já quase dormia quando aquela gritaria. Ele foi ver e aprendeu:
Tanto grito
é maluco, é assassinato
ou é truco
Na  Pensão  Alto Paraná, um dia chegou um mascate com duas baitas malas que botou no chão, com lenço úmido enxugando a testa, e o pai do menino  perguntou:  Tudo bem? O mascate sorriu, cansado que só, mais suado que cavalo de arado, mas tombou uma das malas, mostrando que estava vazia, tinha vendido tudo, e sussurrou piscando para o me nino:
Eita vida boa
se melhorar destoa
A mãe do menino veio lá da cozinha enfumaçada, fazia janta para as dezenas de hóspedes,  e perguntou se o mascate não tinha uma correntinha de ouro falso, para pendurar no pescoço uma santinha. Então a ajudante também veio lá da cozinha e trucou:  -O senhor não vai deixar essa jóia de mulher usar ouro falso, vai? O menino viu o pai comprar uma corrente de  “de puro ouro” do mascate, e aprendeu:
Escrevo e assino
o maior lobby
é o feminino
Um dia,  o menino foi pescar com o avô,  e lá pelas tantas, como os peixes demoravam,  perguntou  porque o pai e a mãe brigavam tanto. O avô ficou olhando um barco deslizar pelo rio antes de falar que isso é normal
Homem e mulher vão
no mesmo barco
mas noutra direção
Na casa dos  avós,  o avô botava a cadeira na calçada, a vó sentava na cadeira de balanço da varanda.  Passavam homens, conversavam com o vô na calçada.  Passavam mulheres, do portão conversavam com a vó na varanda.  Até que um dia deixaram de passar, e a vó perguntou porque.  O vô apontou que toda casa agora tinha uma antena.
Agora, velha
o povo quer é
novela
A vó regava com um bulinho amassado as plantas da varanda, com tantas flores que beija-,  flores  zanzavam sempre por ali, um até se enroscou nos  longos cabelos dela, e ela riu.
Deus nos valha
até beija-flor
às vezes atrapalha
Comendo  coxa de frango o vô  quebrou um dente, a vó falou viu, mania de comer depressa!  O vô falou que era a idade, isto sim, os dentes já não eram fortes como antigamente
Opa, o mesmo tempo
que quebra  dente
ensina a gostar da sopa
O vô continuou a usar chapéu mesmo quando os filhos deixaram de usar, aliás  quase todos os homens deschapeuzaram .  Um dia, um filho chegou e pendurou boné no chapeleiro, o vô estrilou, o filho perguntou por que, ele disse ué, precisa explicar?
Pois é

chapéu não gosta
de boné
O vô deu de esquecer as coisas, onde tinha deixado isso ou aquilo, o que é que estava procurando mesmo. A vó falou ih, será que você tá ficando caduco (naquele tempo ninguém tinha Alzeimer, só caducava). Ele respondeu que tinha pouco tempo pra lembrar de tanta coisa.
Viver é incrível
quando eu morrer, a vida
será  inesquecível     ( Texto de DOMINGOS PELLEGRINI  
d.pellegrini@sercomtel.com.br  publicado na pag 21 do JORNAL DE LONDRINA, 21 de dezembro de 2014)

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