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domingo, 16 de julho de 2017

A OUTRA VIAGEM


   No colo da mãe, o bebê seguia absorto olhando a janela
   Ele olhava a janela do ônibus como se visse um mundo novo. Um pequeno Colombo em sua América noturna e restrita. Mas se a paisagem passando como um filme à luz da lua era um encanto para os adultos, imagine para um bebê. A viagem era longa. Ele já tinha dormido, acordado, mamado e agora não desgrudava os olhos do vidro. Além da luz e do movimento, os sons que vinham de fora chamavam sua atenção: carros passando num vruuum que se perdia na estrada. Os caminhões mais lentos, pesados, criavam um ronco profundo sem que ninguém dormisse. Uma série de coisas que se moviam nas sombras e deslumbrava o pequeno passageiro. 
   No colo da mãe, com a vó no banco ao lado fazendo graça para chamar sua atenção, o bebê seguia absorto, olhando para a janela. Em dado momento, mostrou a lua cheia com o dedinho, balbuciou alguma coisa que suponho ser um poema e olhou para os adultos como se pedisse: “Quero aquilo ali”. Bebês não sabem que não podem ter a lua. Mas ele a olhava como se fosse o macrocosmo de um berço com luz dependurada, escondendo-se às vezes num cortinado de nuvens. Carneirinhos? Bichos de pelúcia? O algodão com o qual a mãe limpava seu umbigo depois do banho? O bebê não sabia, mas gostava. Era uma paisagem sublime e noturna que poucos adultos apreciam, mas as criancinhas entendem melhor a beleza. 
   Ele agitou os braços quando viu uma cidade ao longe, outro colar de luzes, um pisca-pisca de Natal amarelado. Deve ter bonito mais esse brinquedo à vista. Também quis pegar, uma, duas, três lâmpadas, a mãe ria, a avó permanecia encantada, dizendo um bilu-bilu a cada gesto do neto que devia ter pouco mais de um ano. 
   Da minha poltrona, assistia a tudo como se fosse um filme, um Felini protagonizado por um pequeno astro. Vestido com roupa de malha, bem penteado como os filhos das mães caprichosas, ele capturava meu olhar, quando eu mesma não me voltava para ver o céu. Afinal, éramos espectadores do mesmo filme, subindo e descendo morros como se estivéssemos num tobogã imaginário, cheio de carros ultrapassando retas e curvas. 
   Quando chegamos perto da cidade, o bebê se empolgou, soltou um grito, todos riram no ônibus, enquanto ele apontava as luzes mais próximas, a silhueta dos postes onde havia várias luzes no alto, uma coleção de luas. Depois o recorte dos prédios e das casas mais baixas, uma paisagem menos empolgante que o bebê continuou “assistindo”. 
   Passada a cidade, com as pessoas em silêncio e um friozinho tomando conta de tudo, o menino foi enrolado numa manta e continuou com os olhos pregados na janela. Sabe-se lá quantas histórias passaram pela sua cabeça. Chegaria em casa? Ficaria para sempre no colo da mãe? Iria morar numa cidade? Só nos resta perceber e se emocionar com o vislumbre das suas descobertas. 
   Aos poucos, ele sentiu sono e fechou os olhinhos. Percebi que entraríamos na parte secreta do filme, aquela que ele levou para seus próprios sonhos. Fiquei olhando seus pés calçados com meias, minúsculos como m brinquedo, última visão que guardei do bebê antes de descer e retomar a vida, depois de viajar por outros mundos com um passageiro inesquecível.

   A jornalista Célia Musilli está em férias . Neste mês, serão reproduzidas na Folha 2 crônicas já publicadas e que tiveram bom índice de leitura. (FONTE: Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, celia.musilli.@gmail.com caderno FOLHA 2, página 2, coluna CÉLIA MSILLI, 15 e 16 de julho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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