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domingo, 12 de março de 2017

UMA MULHER NA CORDA BAMBA


   Para ganhar a vida escolhi ser jornalista, um paradoxo que consiste em andar na corda bamba ou num fio do tempo sempre esticado



Quando escolhi o jornalismo como profissão não faltou a preocupação familiar com o meu futuro. O que faria uma mulher que gostava de escrever para ganhar a vida? Seria mais realista ingressar num banco, vender apólices de seguro, fazer concurso para ser professora, mas escolhi andar naquilo que eles consideram andar na corda bamba. Sem críticas excessivas, é verdade, porque meus pais se preocupavam com os filhos, mas sempre respeitaram suas escolhas. 
   Naquele tempo, a única jornalista bem-sucedida que conhecíamos era Oriana Falacci, a italiana de quem lia alguns artigos quando criança. Uma mulher independente, feminista, entrevistadora temida até por chefes de estado, que cavava a tapas aberturas para discutir as questões femininas e as relações políticas. Até por isso, sem muitos tapas e com muito debate, vejo que de lá pra cá o mundo mudou para melhor e eu também. 
   Nunca me arrependi da minha escolha profissional. Diria mesmo que escrever segurou a barra. Crises existenciais e até sentimentais viraram textos e até por isso acho minha profissão além de tudo, terapêutica. 
   Sei que a satisfação profissional embora desejada é coisa rara. As pessoas quase sempre fazem discursos pessimistas, meus filhos, muito críticos, sempre põem em dúvida o amor pelo que faço, acham que generalizo e que nem todo mundo é feliz no trabalho. Eu rio, porque acho o pessimismo também uma generalização, e digo para esconderem dos amigos que têm uma mãe workaholic, certas coisas “pegam mal”. 
   Alguns dias da semana são especiais na rotina de um jornalista, tem sempre aquela segunda que vai exigir mais atenção ou as quintas que demandam esforço dobrado. Sempre escrevo as crônicas às quintas que começam com uma preocupação quanto ao tema e quase sempre terminam com a satisfação de por mais um texto na rua, em movimento, porque assim que eles saem do teclado batem asas e não são apenas meus, são de todos os que os leem concordando ou discordando da minha forma de interpretar o mundo. A escrita é a leitura do mundo, a forma como absorvemos ou processamos uma semana de lutas feministas , por exemplo, algo que não me passa despercebido sendo eu uma mulher que escolheu escrever para ganhar a vida, andando sempre na corda bamba, correndo o risco de agradar ou desagradar profundamente aos leitores, mas sem dourar a pílula para tornar palatável o que não é. 
   Considero-me feliz por gostar tanto do que faço e encarar os dias apertados como um teste de maestria, andando sobre o fio do tempo bem esticado. Entre outras coisas, o jornalismo me deu autocontrole – que consiste em não deixar a peteca cair em dias curtos para uma montanha de tarefa – e a capacidade de me reconhecer num trabalho que me absorve e me realiza. O trabalho não pode ser um peso ao qual nos atamos como escravos. A noção de exploração que alguns carregam muitas vezes está na razão direta da insatisfação com o que se faz. Prazer é outra coisa. É essa alegria de acordar e dormir enfileirando letras como quem faz um colar de palavras. Coisa delicada e bem comprida que só vai terminar quando eu morrer. 
   Outro dia meu filho perguntou: “Quantas crônicas você escreveu, mãe?” Fiquei feliz ao constatar que faz tanto tempo que até já perdi a conta. Não vivo de contas, mas da pulsão de escrever o que desejo. Acho bonito demais por uma ideia em pé. (Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com páginas 2 e 3, coluna CÉLIA MUSILLI, caderno FOLHA 2, 11 e 12 de março de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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