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sábado, 21 de maio de 2016

ASSOMBRAÇÃO...


   Éramos crianças e levadas. Morávamos bem pertinho, casa com casa, separadas por uma cerca de madeira e um portão só encostado, que permitia que os nossos vizinhos, a família Alves Pereira, viesse tirar água limpa e fresquinha do poço, profundo. Era um costume bastante comum, na época, meados de 1960, nas cidades pequenas. 
   Todas as tardes o seu Osvaldo chegava cansado de trabalho na chácara, onde ficava o seu todo, enquanto a mulher, dona Joaquina, cuidava da casa e da comida, da lavagem da roupa, cantarolando alegremente em sua simplicidade e paciência sem fim com os problemas da família numerosa. Os filhos mais velhos já trabalhavam, mas a escadinha ia longe. 
   Minha mãe se dava muito bem com todos e nessa convivência familiar com a vizinhança a gente crescia. Havia uma coisa interessante que nos fazia esquecer a casa, a hora, a vida: era mergulhar profundamente nas histórias que o seu Osvaldo, após o jantar, nos contava. 
   Eram histórias escabrosas, de folclore misturado com gente que morreu e voltou, almas penadas, animais monstruosos, cemitérios, cruzeiros e um tal de “coisa ruim” que nos deixava de cabelo em pé, assombrados, com grande medo, mas não nos deixava ficar sem ouvir as histórias de assombração, eram excitantes demais, parecia que estávamos assistindo a um filme de terror, coisa que nem existia. 
   Com sua voz meio rouca, seu jeito caipira de falar, ele nos fascinava e nos dava a liberdade de correr para a sua casa, encher a cozinha e ouvi-lo contar as histórias. Era um misto de medo, de arrepio, mas não tinha quem fizesse a gente arredar pé, sendo necessário, às vezes, que a minha mãe gritasse , lá de casa onde estava costurando, ou fosse nos buscar brava, por estarmos incomodando os vizinhos. 
   Ele começou assim, meio devagar, fazendo suspense. “Então eu ia passando perto daquele cruzeiro que tem lá embaixo, perto do mata-burro, de noite, vortandrachacra e ouvi um barulho.”
   Pronto! A meninada se entreolhava arrepiada! E ele continuava: “Aí a coisa ruim apareceu e foi no pé do cruzeiro. Naquele cruzeiro que fica perto do Mané Faria. E começou a mexer na cova”. Eu já imaginava comigo mesma, nunca mais eu passo lá perto. 
   E as histórias iam longe, até que as crianças mais novas começavam a fechar os olhinhos, o contador de histórias também e era hora de ir embora. Os poucos metros que separavam as casas pareciam quilômetros. Íamos devagarzinho, tateando pelo escuro, pois não havia energia elétrica e a luz das lamparinas e lampiões sombras e assombrações medonhas nas paredes. O cruzeiro do mata-burro parecia tomar forma. Sem contar que, apesar do medo, meu irmão dava uns gritos. “Olha o “coisa ruim!” . E a gente gritava e saía tropeçando uns nos outros. 
   Só mesmo a bronca da mãe mandando todo mundo ir para a cama dava um jeito na baderna. Devidamente seguros na cama, cobertos até a cabeça, não demorávamos a pegar no sono. No outro dia tinha mais. E assim a gente cresceu juntos, trocando desde histórias de assombração, amizade entre os pais e os filhos, problemas cotidianos, tirando água do poço, emprestando açúcar, farinha e compartilhando tantos dias bons, sem nada de “coisa ruim”.
   Com o tempo passando já não tínhamos mais medo de assombração, nem ouvíamos histórias. Uns se foram para sempre, outros se mudaram para outras cidades para, mais tarde, a maioria se reencontrar na cidade de Londrina. 
   Num cantinho do coração, ainda guardo a imagem das casas quase grudadas, das vozes e dos rostos das pessoas queridas, porque isso o tempo não apaga, pelo contrário, torna mais gostoso, saboroso mesmo, como um vinho antigo, degustado no silêncio, aonde se lê o rótulo “saudade”. E como saudade não dá para definir, a gente diz que são lembranças de pessoas e tempos inesquecíveis. ( ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 2, FOLHA RURAL, espaço DEDO DE PROSA, sábado, 21 de maio de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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