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terça-feira, 1 de março de 2016

A NOITE EM QUE MEU PAI NASCEU DE NOVO




   “Necessário vos é nascer de novo”, diz Jesus a Nicodemos, sábio do Templo que foi procurá-lo durante a noite, Era noite quando meu pai saiu da última sessão de quimioterapia, na clínica que fica às margens do Igapó, e decidiu dar duas voltas em torno do lago antes de ir para casa. Eu estava ao seu lado e caminhávamos silenciosamente. Também devia ser noite quando Paulo, então com 19 anos, saiu do trabalho e decidiu passar na sede de um cursinho pré-vestibular em São Paulo. Paulo estava com fome, mas só tinha dinheiro para uma média, além dos 45 cruzeiros para a matrícula. Mesmo com a barriga roncando e debaixo de garoa, foi caminhando até a sede do cursinho. 
   O diretor do cursinho chamava-se Dr. Tomás. Paulo esperou por 45 minutos até ser atendido. Quando finalmente entrou na sala, sentiu o perfume de Dr. Tomás, perfume caro. Os óculos de lentes grossas não permitiam ver as pupilas do diretor, tinha as unhas bem tratadas e um nó da gravata incomum. Na parede um quadro mostrava uma cena das antigas fazendas de café . O diretor cruzou as mãos sobre o tampo da mesa de vidro:
   - O que você deseja, meu jovem?
   De forma resumida, Paulo expôs ao diretor o seu caso. Tinha vindo recentemente de uma pequena cidade do interior, Mirandópolis, e conseguira um emprego temporário de office-boy. Morava numa pensão no Brás. Seu objetivo era estudar à noite e prestar o vestibular para a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. 
   O diretor escutou pacientemente o relato. Ao final, sorriu:
   - Meu jovem, vou ser franco e direto, para não perder o seu tempo nem o meu. Você não tem mínima chance de passar na São Francisco    -  Procure outro objetivo na vida.
Paulo ficou silencioso por uns instantes – o tempo necessário para seu estômago roncar com muita força. Tomás ouviu o ruído da fome, sabia o que era aquilo, mas preferiu ignorar. Paulo se levantou e disse: 
   - Entendo, Dr. Tomás. Mesmo assim eu gostaria de levar os livros para estudar sozinho na pensão. 
   - Pode falar com minha secretária. São 45 cruzeiros. Mas devo alertar que o sr. está desperdiçando dinheiro.
   Penso no desamparo de meu pai naquela noite, caminhando do centro de São Paulo até sua pensão no Brás, com os pesados livros do cursinho. Durante o percurso, algumas lembranças lhe vieram à mente. O destino de Jair, jogador de basquete que morreu eletrocutado ao encostar-se num poste depois de uma partida. As noites alcoólicas de Álvares de Azevedo na antiga São Paulo. O pai, que morrera de desgosto, após atropelar um jovem que ficou paraplégico.
   Ao entrar no quarto da pensão, olhou para o livro de Somersete Maugham que estava em sua cabeceira e, por um momento, leu “Solidão Humana” em vez de “Servidão Humana”. 
   Paulo estudou sozinho todas as noites e foi aprovado no vestibular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Voltou para dar notícia ao Dr. Tomás. Necessário nos é nascer de novo. (Fale com o colunista: avenidaparana@folhadelondrina.com.br espaço coluna AVENIDA PARANÁ por PAULO BRIGUET, página 3, caderno Folhas Cidades, terça-feira, 1 de março de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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