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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

PREFÁCIO ESCRITO POR PADRE FÁBIO DE MELO AO LIVRO "KAIRÓS'

   Este livro é filho do tempo. O autor o concebeu a partir de sua sensível forma de perceber o mundo. Quando o desassossego lhe visitou o coração, ousou extrair as palavras que pulsam na superfície do cotidiano, toda vez que a vida não acontece do jeito e no tempo que havíamos programado.
   Este livro nasceu das entranhas dos dias, do inevitável movimento das horas, da dinâmica existencial que nos faz sofrer a demora das esperas, de nossa incapacidade de lidar com o entrelaçamento de passado, presente e futuro. 
   Sim, a vida nos mostra. É preciso sabedoria para que não sejamos estrangulados pelo peso desse encontro. É compreensível. São três tempos disputando o espaço de um só coração. O passado com sua facilidade de nos imputar culpas, tornando nossa vida um eterno tribunal, cujo julgamento nunca poderá nos conceder uma sentença satisfatória. O presente, com suas pressões que nos cegam, com urgências que nos privam de saborear as escolhas. E o futuro, esse senhor misterioso tecido de névoas, esperanças e incertezas.
   O ser humano nunca foge a esse conflito. É no trevo desse encontro que nos descobrimos cronológicos. O relógio nos comanda. A estrutura de nossas vidas passa por agendas repletas de compromissos. Eles cumprem o ofício de nos dar a breve sensação de utilidade. Quanto mais cheia, melhor. Grifamos os dias no calendário, e nos grifos nos equivocamos. Reservamos horas preciosas às futilidades. Maquiamos o frívolo, damos a ele uma falsa essencialidade. Posicionados na convergência dos três tempos, sofremos as consequências de não sabermos articulá-los com sabedoria. Presenteados pelo presente, renunciamos ao dom que ele representa. Focados em passados e futuros, colocamos nosso empenho em terrenos ardilosos, gastamos nosso sangue com questões que só o distanciamento nos mostrará que eram inúteis. 
   Mas nunca é tarde para reformular essa relação. Há um ponto de onde podemos partir. A sabedoria bíblica nos ensina que, “para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu”(Ecl 3,1). Viver sabiamente talvez seja isso. Alcançar a serenidade que nos permite sorver bem um dia de cada vez. O preceito e sugestivo. Nele está latente a articulação harmoniosa da cronologia. Passado e futuro se prestando a banhar o presente com a luz do discernimento. 
   Este livro nasceu de um coração sacerdotal. Brotou de um homem afeito à liturgia das horas, à oração que congrega toda a Igreja, que embora espargida em cinco continentes, e vivendo fusos diversos, converge para o movimento de uma mesma prece. A oração não se prende ao khronos. Dele parte, mas o ultrapassa. As vozes humanas quebram os grilhões das horas, a prece desfaz o condicionamento que aprisiona o universo. Não é noite, nem dia. É eterno.
   É a partir dessa mística que descobrimos o Kairós: o tempo que não é tempo, o momento que quebra o determinismo dos outros momentos, a luz que desfaz o monocromático da rotina e banha com novo sentido. Novas cores, a cronologia que nos envolve. E então compreendemos a espera como preparo do “momento oportuno”. A oração nos ajuda a compreender os limites humanos. O que antes nos torturava recebe o batismo dos altares. A liturgia que celebramos nos resgata do absurdo. O sacramento desfaz as regras do Khronos. O ausente fica presente, a palavra já dita volta a dizer. A salvação se atualiza em nós de gestos sacramentais. 
   A celebração litúrgica se mistura à nossa vida. Assim como a gota de água. Símbolo de tudo o que é humano, se mistura ao vinho, símbolo de tudo que é Divino. No cálice estamos inteiros. Deus e nós. Distintos, mas congregados. E após comungarmos do banquete e da palavra, o Cristo passa a se esconder em nós. E escondido, revela-se. É o processo da conversão. Na cronologia que nos cerca, Ele semeia o Seu tempo de graças. Envolvidos por sua ação generosa, avançamos na Sua direção. A mentalidade antiga e tão marcada por posicionamentos mesquinhos vai dando espaço a uma aperfeiçoada forma de olhar o mundo. E então seremos modificados nas mais simples percepções. Compreendemos que Deus nos protege quando adia nossos sonhos. Que nos diz sim mesmo quando nega o que pedimos. Que nos livra de sofrimentos maiores quando nos frustra.
   Padre Marcelo Rossi sabe bem o que significa isso. Volto a dizer: este livro é filho do tempo. Nasceu da necessidade de compreender, no silêncio do coração, que nem sempre a hora determinada por nós como certa é a hora escolhida por Deus. Requer liberdade interior para saber identificar essa aparente contradição. Essa liberdade só nos vem pelas mãos da sabedoria que provém dos céus. Saber identificar o “momento certo” carece estar povoado pela presença Divina. 
   Este é o nosso empenho. Ampliar os estreitos territórios do coração para que neles Deus venha morar. A Teologia nos sugere: Deus está todo em nós. Em sua decisão amorosa de se revelar plenamente em Jesus, Ele se estabeleceu definitivamente no coração humano. Mas é necessário retirar os obstáculos que O impedem de ser visto quando vivemos. 
   É a dinâmica do “já” e do “ainda não”. É a Teologia a nos tirar da mira do tempo, concedendo-nos o conforto de antecipar na hi
stória tudo aquilo que esperamos viver céu. Somos a Igreja que caminha na direção da identidade cristã. Somos criados à imagem e semelhança Divina, mas estamos constantemente ameaçados pela dissemelhança. Deverá ser nosso empenho: receber a graça do Altíssimo e atualizá-la na vida da Igreja. Deverá ser nossa missão: facilitar a manifestação do Kairós na vida do mundo. 
   A revelação de Deus na história passou pelo acolhimento generoso de homens e mulheres, que experimentaram na carne o desafio de oferecer ao Senhor o tempo de sua vida. Este livro reúne belíssimos exemplos desse empenho.
Estou certo de que se trata de mais um poderoso instrumento oferecido a todos os que se dispõem a descobrir o Kairós como um estilo de vida. Sim, o Kairós é o tempo dos altares, dos sacrifícios que santificam o que é humano, no qual prevalecem as liturgias, os cantos que encaminham a alma à contemplação que lhe permite ver com novos olhos os dias que passam. 
   Talvez seja por isso que a religião se apresenta como uma segunda via. Frente ao tempo cronológico, que nos esmaga, ela nos ensina o Kairós como tempo que nos salva. Paralelo ao Khronos está o tempo da graça, da oportunidade que nos encaminha ao fundamental da vida. 
   Padre Marcelo Rossi nos convida a viver esse desafio. Eu aceitei. A leveza destes escritos já me fez esquecer o tempo. Aceite você também. ( Com meu carinho e bênção: PADRE FÁBIO DE MELO . 1ª EDIÇÃO, 2013, EDITORA GLOBO S.A.).

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