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domingo, 1 de novembro de 2015

A VARA DO CIDÃO

 


   A vara do Cidão se foi. Ele me deu de presente depois que também se foi e, uma semana depois, sua mãe chamou:
   - O Cido disse que queria deixar suas varas de pesca para os amigos. Esta ele falou que é pra você.
   Uma vara amarela, com cabo de madeira, coisa fina como Cido gostava. E me deu tantos peixes! Mas era manhosa: se a outra var pegasse três  peixes seguidos, e ela nenhum, então ela se negava, passava a tarde toda sem nem triscar, quietinha que só. Mas, na pescaria seguinte, pegava três peixes enquanto a outra nada pegava.
   E gostava de elogios. Pegava um peixe, eu elogiava – você é a vara mais bonita deste pesqueiro – e ela pegava outro peixe em seguidinha.
   Foi companheira de tardes surpreendentes, com voos de garças e cantos de passarinhos, a brisa enrugando a lagoa, o teatro magnífico do Sol poente, até o dia em que, de repente, mal ouvi a sineta, vi minha companheira ser arrastada para a água, feito uma cobra reta a deslisar pela grama. Pulei, tentando pegar, mas que! Tentei puxar do fundo com anzol e chumbada, e nada. Então me conformei: vara do Cidão, descanse em paz. Lembrei um dito dele:
   - Tudo passa – completando com olhar matreiro – E tudo fica.
   Um dia, resolvi perguntar:
   - Como assim, Cidão, se tudo passa como é que fica?
   Ele respondeu sorrindo com seu olhar menino:
   - Fica pra pegar a vida, ué. Cada instante que passa, fica enquanto é vivido.
   Sim, Cido, tua vara me lembra que tudo que temos é tempo , apenas tempo, que gastamos vivendo, tempo que vai morrendo para nos pagar a vida.
   Sempre  admiro de saber que os cientistas continuam tentando aprimorar a teoria do Big-Bang para explicar o começo do Universo. Mas, ora, se existiu um Big-Bang que tudo teria começado, o que existiria antes dele? Nada? Mas como é possível nada existir? Mais incompreensível de que tudo existe infinita e eternamente, é a ideia de que nada exista. Então tudo teria vindo do nada?...
   Acho confortador pensar que tanto o Universo quanto a Eternidade são incompreensíveis, e assim resistirão a quantos super-telescópios enviarmos ao Espaço, a quantas teoria inventarmos para sondar o que está além de qualquer sondagem. Lembro da frase taoísta: Deus é a palavra que inventamos para expressar nossa perplexidade diante dos mistérios absolutos do infinito, da Eternidade e da existência”.
   Uma coisa só é certa: o ontem e o amanhã estão no instante. No instante em que tua vara se foi Cidão, foi como um clarão a dizer que um dia também irei, todos iremos, e isso é que faz de cada momento o melhor tempo da Eternidade, e o chão que pisamos o melhor pedaço do infinito.
   Ou: o tempo perguntou pro tempo quanto tempo o tempo tem, e o tempo respondeu pro tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tem. ( Crônica do escritor londrinense DOMINGOS
 PELLEGRINI, página 21, cultura, espaço DOMINGOS PELLEGRINI  d.pellegrini@sercomtel.com.br  facebook.com/escritordomingospellegrini domingo, 1 de novembro de 2015, publicação do JORNAL DE LONDRINA).

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