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sábado, 18 de julho de 2015

CAFÉ DE BUGRE

    


  Estávamos em meados da década de 1960. Eu havia sido promovida na escola e compraram cadernos novos para mim. Ficava literalmente babando em cima deles, não sem antes pegar os cadernos usados de minha irmã mais velha para aproveitar os espaços e preenchê-los sem nenhum problema, admirar sua letra linda, seu capricho, os pontos de Geografia, História  e Ciências que agora eu teria que decorar e os decalques...ah, os decalques eram coisas de sonho! Figurinhas, flores,  paisagens, animais  e frutinhas  que decoravam graciosamente os cadernos na época. A gente comprava as folhas no bazar, recortava, colocava na água e delicadamente retirava uma película  e colava mais delicadamente ainda na margem do caderno de brochura, linguagem, aritmética, araminho ( ou espiral), conforme a matéria.
   As capas de papel de seda amarelo foram adquiridas e, é claro, minha irmã faria esse trabalho por mim. Mas estava faltando cola. Naquele tempo, costumávamos fazer em casa uma mistura de farinha e água  e usar como cola.Mas ficava grudenta, às vezes grossa, outras fina, molhava o caderno, fazia bolhas que atrapalhavam na hora de escrever. Não, essa não servia. Precisávamos mesmo era de goma arábica, uma cola fina, se espalhava bem, transparente, vinha até com pincelzinho. Só que não tinha, não deu para comprar.
   Como na necessidade aumenta a criatividade, eu e meu irmão tivemos uma brilhante ideia. “Que tal ir buscar cafezinho de bugre? Café de bugre era uma arvorezinha de troncos meios finos, cujos frutos eram semelhantes aos do café e, esmagados, usados como cola pelos meninos para fazer pipas e também para colar as capas dos cadernos na escola, apesar de não ficar tão bonito. Ficava manchado, grudento, saía a capa, rasgava o papel das varetas e o grude continuava lá.
   Logo encontramos a arvorezinha e eu fui escalar para colher os cafezinhos de Bugre. Costumava subir em tudo com muita facilidade: árvores, telhados, muros, postes, cercas de balaustres...
   Enquanto meu irmão ficou embaixo para ir catando, eu apanhava a nossa “cola”. Aconteceu, porém, que o galho estava meio seco e, quando me pendurei, caí de costas, ficando quase desacordada, só conseguindo balbuciar para meu irmão: “Chama a mãe, chama a Neide!”. E ele saiu gritando, achando               eu  tinha morrido.
   Passado o susto e incomodada pela dor, ainda havia mais um inconveniente: estava cheia de carrapatos. Precisei tomar banho, lavar cuidadosamente os cabelos e aguentar  minha mãe e irmã, bravas e preocupadas, vistoriando a minha cabeça.
   Mas só conseguia pensar nos meus cadernos desencapados, à espera do cafezinho de bugre para ficarem lindos como os da minha irmã.
   E não é que (acho que foi para me agradar) ela havia conseguido comprar a goma arábica e encapar caprichosamente os cadernos? Foi colando os decalques e deixando tudo prontinho par começar o novo ano letivo, inaugurar aquelas folhas branquinhas. E ainda me deu de presente a pasta escolar de couro marrom, já bem usada, que eu tanto cobiçava. (  Texto escrito por ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 2, espaço DEDO DE PROSA, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA,  sábado, 18 de julho de 2015). 

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