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sábado, 23 de maio de 2015

ÁGUA DO TIGRE




   Aguardávamos ansiosamente pelas férias de final de ano. Como prêmio por avançar à série seguinte, meus pais nos levavam para passar uma parte das férias no sítio de meus tios, em Sertanópolis, na famosa Água do  Tigre, onde nasci. O bom e velho Corcel 1972 amarelo partia de Londrina com a família toda. Na viagem, chegávamos a contar quantas curvas ou capão de mato havia no percurso de 45 quilômetros. Para chegar no sítio pegávamos uma estrada de chão com pouco moledo e passávamos por uma ponte de madeira com troncos grossos sobre um pequeno canal de rio.
   Água límpida e corrente descia lentamente até irrigar a rizicultura. Quantas vezes pescávamos lambaris e carás naquelas águas. As primeiras braçadas tentando aprender a nadar foram ali. Até pequenos peixes engolíamos na superstição de que aprenderíamos mais rápido.
   Nesse sítio, meus tios passaram a vida toda. Vida pacata, com pássaros cantando o dia todo. Três casas quebravam a monotonia das plantações. Todas de madeira nobre, muito bem construídas e decoradas por eles mesmos. Uma pequena varanda dava vista para as demais e a comunicação visual acalmava a solidão.
   A cozinha era o local onde mais circulava gente. Depois da dura lida no campo, meus tios retiravam do poço água fresquinha. No canto da cozinha, o bom e velho fogão à lenha com chapa de ferro fundido e três bocas. Sobre ele as panelas já ficavam prontas para a próxima refeição.
   Não havia ainda luz elétrica que pudessem dar a eles maior conforto. Mas a vida era bela mesmo assim:  a lamparina era acesa depois que o sol se punha. Exalava cheiro de querosene e emitia uma fumaça negra que subia e se desfazia no ar.
   O jantar, preparado com as mãos hábeis de nossas tias, era iluminado por duas ou três lamparinas. As panelas sempre cheias com as iguarias rurais: carne de porco na banha, quiabo fresquinho, lingüiça de porco e cudiguim. O cheiro da fritura enchia a casa inteira  e aguçava o apetite. Como resistir? Conservavam-se as carnes em latas de banha que duravam bons meses até o abate do próximo suíno gordo. De manhã, leite fresco tirado das vacas que ainda amamentavam seus bezerros. Pão caseiro feito no dia anterior no forno de lenha, em folhas de bananeiras.
   O dia todo era um corre-corre . Andávamos no meio da plantação, pescávamos nos canais do rio, subíamos nos pés de frutas e ali nos saciávamos. Às vezes até caçávamos com estilingues. As munições eram bolas de barro secas ao sol .
   Quando o dia ia se acabando era hora do banho. Tia Geni  ou tia Linda esquentavam litros de água que eram colocadas no “chuveiro”, dependurado por corda e com uma pequena torneira para controlar o fluxo. Tínhamos que tomar banho rápido pois se a água acabasse, terminaríamos com canecas de água fria.
   Quando a noite chegava,  não havia mais o que fazer. A escuridão tomava conta do sítio. Tio Getúlio escutava modas no rádio ou notícias do mundo. Acendia o cigarro de palha e meditava. Olhávamos da janela para a escuridão lá fora, víamos vaga-lumes voando e escutávamos o barulho de bichos desconhecidos. Camas arrumadas, lamparinas apagadas: o dia estava ganho. Na manhã seguinte, tudo recomeçava e a doce rotina rural se repetia. ( Texto escrito por VALDINEI FRANCO, leitor do caderno FOLHA RURAL, página 2, espaço DEDO DE PROSA, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, sábado, 23 de maio de 2015). 

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