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domingo, 4 de janeiro de 2015

CARTA PARA 2015


     Em 2015 vou sobreviver ensolarada, deixando para trás as sombras de 2014 que acabei de trancar no porão de um navio. O ano se foi com as sombras desfolhadas, os rios sem peixes, a terra sem chuva, os amigos que perderam filhos, o que perdi em mim mesma, ainda que tenha sido só um pouquinho a cada dia. Casas e pessoas desmancham-se em doses homeopáticas.
     O que  teria sido o ano sem os livros de Manoel de Barros depois de sua partida, com a poesia nacional suspensa na UTI.
     O que teria sido do ano sem o seu abraço, sem aquele filme em que fomos protagonistas, nouvelle vague paulistana, na estação do metrô.
     O que teria sido do ano sem aquela noite na Praça Roosevelt, onde revi as cenas de Walter Hugo Khoury pela narrativa de seus olhos.
     O que teria sido o ano sem os recitais de poesias e a audição solitária de música depois da meia-noite, além das operas fervilhantes que  vi  no teatro onde orquestras desafinam antes da hora, acostumando nossos ouvidos à dissonância.
     O que teria sido do ano sem meus filhos aparecendo e desaparecendo como cometas, deixando aqui em casa a rota circular de seus afetos. Descobri assim que o amor é redondo como o mundo.
     O que teria sido do ano se fosse apenas um período eleitoral em que causamos mágoas uns aos outros, brigando por siglas que se misturam e ideologias falidas
     O que teria sido do ano se restasse apenas o noticiário falando  de crianças que morreram esquecidas nos carros, presas aos cintos da insolação.
     O  que teria sido do ano se computássemos perdas sem nenhum ganho, embora as conquistas,  mais que um prêmio, sejam às vezes uma questão de malabarismo emocional. Somos todos equilibristas
O que teria sido do ano se a gente não acreditasse  que  o tempo se renova e que o calendário só existe para que a gente enxergue o futuro.
Agora, 2014 partiu.
    Em 2015  quero as açucenas, fazer as pazes com as formigas, viver numa floresta de prodígios, passar de mulher a borboleta, de pedra a musgo, de aranha a veludo, de gaiola a passarinho, de pessoa física à física quântica, só para experimentar o vôo e a maciez do tempo.
     Não caber em mim não é problema de falta de limites. É a solução de quem transborda.
     No fundo, em 2015 quero mesmo é ser poeta, o resto me inviabiliza.
     Façam também seus pedidos e Feliz Ano Novo para todos.    ( Texto de CÉLIA MUSILLI, celiamusilli@te3rra.com.br  publicado na Folha 2, pag 4, do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 4 de janeiro de 2015). 

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